Por que o filho do faraó teve que morrer?
É preciso enxergar nossa história à luz da grande história da Salvação
“Mamãe, por que o filho do faraó teve que morrer?”
Essa era sempre a primeira pergunta do meu filho Pedro, aos seis anos, quando líamos juntos a história do Êxodo. Antes de tentar respondê-la, era preciso colocá-la em uma perspectiva mais ampla — reinseri-la na narrativa maior da História da Salvação.
“No princípio criou Deus os céus e a terra...”
O livro do Gênesis é um livro de histórias. Como toda boa história, ele é cheio de cenários envolventes, tramas empolgantes, heróis e vilões. Nos 3 primeiros capítulos, fazemos um voo panorâmico pela história da criação do Cosmo e da humanidade e assistimos à entrada do pecado no mundo. Você já parou para pensar na quantidade exorbitante de informação "compactada" que encontramos nesses três primeiros capítulos?
Depois que as coisas saem dos eixos e o expectador quase abandona a esperança ao contemplar a ruptura relacional deixada pelo pecado em uma espiral descendente de escuridão, o narrador nos fala da promessa de restauração por meio da “semente da mulher”.
No capítulo 12, as lentes narrativas se deslocam do “macro cenário” para enfocar uma única família. Neste momento, somos apresentados a um casal idoso e estéril chamado por Deus para abençoar todas as famílias da terra. Os últimos 38 capítulos do livro do Gênesis nos contam sobre a peregrinação deste casal, dos seus filhos e dos seus netos. No fim do livro, a família havia ficado grande o suficiente para atemorizar o soberano do Egito, uma das principais potências do mundo antigo.
Digno de grandes produções cinematográficas, o livro do Êxodo nos mostra que Deus não poupou esforços para libertar o seu povo da escravidão e pragas que desafiaram as leis naturais caíram sobre o Egito. No encerramento desta sessão, assistimos à travessia pelo Mar Vermelho. Mas a narrativa está ainda longe de atingir um clímax. Séculos se passarão, muitas gerações surgirão e desaparecerão antes que conheçamos o verdadeiro herói dessa história.
Enquanto Ele não aparece, nomes como os de Abraão e Sara, Isaque e Rebeca, Lia, Jacó e Raquel, Sifrá, Puá, Moisés, Rute, Davi, Ana e Samuel nos são apresentados. O que essas pessoas, nascidas em diferentes épocas poderiam ter em comum? Além do fato de terem vivido milênios atrás no Oriente, todas elas enfrentaram grandes adversidades como infertilidade, migração, rupturas familiares e estigmatização.
Não obstante, cada uma delas desempenhou um papel fundamental na História de Israel e do próprio Cristo. Apesar de suas vulnerabilidades, limitações, fragilidades e falhas, aprouve ao Senhor trabalhar por meio das narrativas pessoais e familiares de cada uma delas para escrever sua Grande História da Salvação.
“As histórias de pessoas nas Escrituras são estudos de caso do relacionamento de Deus com a humanidade. Elas não são fábulas, nem mitos ou lendas de outro mundo. Elas dizem respeito às experiências de gente como nós”, afirma a filósofa, teóloga e socióloga inglesa Elaine Storkey na introdução do seu livro Women in a Patriarchal World (Mulheres em um Mundo Patriarcal).
Para mim, o elemento mais supreendente desta história é o fato de que, por meio de pessoas comuns, Deus opera coisas extraordinárias. Nossas histórias pessoais já estavam na mente de Deus quando, milênios atrás, Ele ordenou que Abraão olhasse para um céu salpicado de estrelas. Naquela noite memorável, o Criador do Cosmo se comprometeu com um homem comum, que nada tinha que o distinguisse dos demais.
“À medida que lemos a Bíblia, descobrimos o tipo de história que ela tem para contar - e descobrimos que Deus está no centro dessa história. A Bíblia é centrada em Deus em todos os seus impulsos: "No princípio, Deus." Quando abrimos a Bíblia, devemos esperar ver Deus. Ainda assim, um paradoxo se desenrola entre as páginas de Gênesis e Apocalipse. Por mais que o livro de Deus seja sobre Deus, não podemos deixar de nos descobrir em suas páginas: os medos que nos paralisam, a ganância que nos corrompe, as preocupações que sussurram sob a capa da escuridão. Se a Bíblia é uma janela para certamente vermos a Deus, ela é também um espelho para nos vermos sobriamente”, escreveu Jen Pollock Michel.
A Bíblia nos mostra por que ainda experimentamos e testemunhamos tanto sofrimento. Ela não nos engana, nem minimiza o peso do pecado. E não disfarça o horror da morte. As narrativas bíblicas muitas vezes carregam um elemento aterrador — alguns relatos superam, em intensidade, os roteiros dos mais sombrios filmes de terror.
Mas elas não param por aí.
O sofrimento, o pecado e a morte não têm a última palavra. Sim, o pecado é terrível e a morte também. Viveremos vidas marcadas pela tristeza e o lado de cá da Eternidade é ainda um vale de lágrimas. Mas a beleza persiste e o Criador continua, fielmente, sustentando a sua criação. A tristeza do pecado coexiste com a alegria das misericórdias de Deus, renovadas graciosamente todas as manhãs.
Na Bíblia, encontramos a promessa de que este belo mundo criado por Deus um dia será completamente restaurado. “A Bíblia nos “re-historiciza” ao nos convidar a enxergar nossas histórias pessoais como parte da Grande História da Salvação”, continua Jen.
Por isso, precisamos aprender a mergulhar na história bíblica — e nos reconhecer como parte desse grande drama. A história, que começou muito antes de nascermos, tem propósitos, reviravoltas e desfechos que jamais imaginaríamos.
Ao descobrir nosso lugar na narrativa em que Deus se revela, revela seu caráter e seu amor, somos convidados a dar um salto para além de nós mesmos — e a receber nossa identidade d’Aquele que “não poupou o seu próprio Filho, antes, por todos nós o entregou”.
Somos filhos amados.
Quando acolhemos o amor de Deus, encontramos propósito.
Ao inserir a história do Êxodo na Grande História da Salvação, consigo conversar com os meus filhos sobre a morte dos primogênitos do Egito. E mesmo que eles não tenham ainda condições de compreender, eles sabem que o Filho de Deus também teve de morrer.
Quando Mariana, minha caçula, tinha apenas 3 anos, ela sussurrava no meu ouvido um pouco antes de dormir que ela não queria morrer. Com o coração pesado, eu respondia que tampouco eu desejo passar pela morte, mas há esperança na ressurreição!
“A separação de Jesus do Pai na Cruz quer dizer que jamais teremos de nos separar da natureza eterna do amor de Deus. Sob essa perspectiva, a morte se torna realmente mais transitória que o amor”, escreveu Sarah Williams.
Conhecer o drama das Escrituras me permite entrever — mesmo que parcialmente — o caráter amoroso de um Deus que formou um povo para si e, por meio dele, alcançou todas as famílias da terra.
Nessa história, encontro o fio que costura propósito à minha existência e ressignifico minhas lutas pessoais à luz da realidade não visível do presente e do futuro. Jesus viveu entre nós, morreu, ressuscitou e um dia voltará para restaurar todas as coisas.
O amor venceu o caos.
Sob essa perspectiva, totalmente diferente das narrativas rivais, podemos viver - e morrer - com esperança.